domingo, 4 de setembro de 2011

Elogio da Preguiça


Crônica de Fernando Sabino.*

Quando me pediram que escrevesse sobre um dos sete pecados capitais, havia apenas dois ainda disponíveis: a Gula e a Preguiça. Sugeriram-me a Gula, mas aí, que preguiça! como diria Macunaíma: por índole e vocação, escolhi a Preguiça.

Já me dispondo preguiçosamente a desimcubir-me da tarefa, ocorreu-me que o tamanho requerido era de cento e quarenta linhas.

__Cento e quarenta linhas? __busquei confirmação, apreensivo, calculando de cabeça: __Mas deve dar mais de quatro páginas...
__Isso mesmo __confirmaram: __Mais de quatro páginas.

E logo sobre a Preguiça, da qual teria tanto a dizer __não fosse a sua existência mesma a pavimentar até o inferno o caminho das minhas boas intenções.

Pecador impenitente, ocorreu-me de saída levantar suspeição sobre a condição de pecado que as Sagradas Escrituras lhe atribuem, ainda mais de um dos sete pecados capitais. De bom grado o substituiria por outro __a Impaciência, por exemplo, que, por um lapso, foi omitida como oitavo e que me parece ser o inspirador de todos eles.

Afirma-se com certa impertinência que a Ociosidade, filha dileta da Preguiça, é a mãe de todos os vícios. Trata-se, pois, de família das mais ilustres no mundo dos pecados. Mas desde quando se pode atribuir à mãe( e no nosso caso à avó) a culpa exclusiva de uma degenerada descendência?

Pois aqui estou eu, disposto a escrever cento e quarenta linhas em defesa da Preguiça. Escoimá-la desta balda injusta que lhe empresta, através dos tempos, uma errônea interpretação das palavras de Deus. A preguiça é própria do homem, feito à Sua imagem e semelhança. E não me arguam de herético, se ouso dizer que até nisso a criatura estará obedecendo aos sagrados desígnios do Criador. Tenho a meu favor as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem fazem provisão nos celeios, e os lírios do campo, que não trabalham nem fiam.

Se na Natureza tudo se transforma, não é menos verdade que nada se perde e nada se cria __não havendo, pois, razões para que apressemos essa transformação. A Lei da Inércia aí está, para não me deixar mentir, e a Preguiça é o seu apanágio.

Preguiça e Paciência andam juntas __ e ninguém há de contestar a força redentora desta extraordinária virtude. A Calma, a Tolerância, a Serenidade, o Bom Senso são outras tantas a que a Preguiça pode conduzir. Não nego que costuma gerar também alguns vícios, como a indolência, a morosidade, a negligência, a irresponsabilidade e o tédio desta vida. Mas entre os extremos a que pode ser levada, permanecerá ela como virtude em si, satisfazendo as condições de uma perfeita equidistância aristotélica.

E o Grande Diligente? E a tarefa incansável deste que anda pelo mundo para perder as almas? Como o leão a rugir, o Demônio ronda lá fora acirrando ânimos, estimulando apetites, desencadeando paixões, desdobrando-se em atividades para arrancar os homens da bem-aventurada sombra e água fresca, que só a prática da Preguiça como virtude é capaz de proporcionar.

Ira, Luxúria, Gula, Inveja, Avareza, Soberba __ não, a Preguiça, como tal, não poderia formar entre tão formidáveis pecados capitais. Seu cultivo talvez conduza antes a negação dos demais, exatamente por implicar a inexistência do elemento propulsor, o animus abutendi, sem o qual eles não chegam a se concretizar. Não fazer nada não significa necessariamente deixar de fazer o bem: este já estará sendo praticado, na medida em que a Preguiça nos impede de fazer o mal. É uma lição que só não aprende quem é incapaz de ficar à toa, ao sabor dos pensamentos, por não ter pensamento algum.[...]

* Crônica extraída do livro A Inglesa Deslumbrada(1967).

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