Artigo de Arnaldo Jabor*
Mesmo descaracterizada, a folia ainda nos salva
Não é a primeira vez que digo que o carnaval virou um tema para o mercado, para as empresas, para os pacotes turísticos; o carnaval virou um produto. Eu tenho saudades da inocência perdida do passado. Lembro das marchinhas toscas que começavam a tocar nos rádios por volta de dezembro, lembro das fantasias bobas — legionários, piratas, caubóis — influenciadas pelos filmes americanos, lembro das escolas de samba a pé na Avenida Presidente Vargas, um bando de índios de bigode e penas de espanador, pintados de preto, seguidos pelas gordas baianas cobertas de balangandãs, a multidão olhando, apanhando dos cassetetes da PE, a temida Polícia Especial de boinas vermelhas e Harley-Davidsons. Os PEs baixavam o cacete nos populares, mas mesmo assim eram amados pelos espancados, que neles viam leais e heróicos homens da lei. Dói-me ver a virtualização do carnaval de hoje, no Rio. O carnaval oficial virou uma festa para voyeurs, turistas inclusive brasileiros na TV e arquibancadas, turistas de si mesmos. Hoje o carnaval chega pronto. Antes, era uma revelação; hoje ele esconde qualquer coisa. Falta um minimalismo poético nos desfiles de luxo.
O carnaval foi deixando de ser dos foliões para ser um espetáculo para os outros; deixou de ser vivido para ser olhado. O carnaval virou uma ostensiva competição de euforia, uma horda de exibicionismos sexuais, uma suruba iminente sem o sensual perfume do passado.
Carnaval sempre foi sexo — tudo bem — mas, antes, havia uma doce inibição no ar, havia a suave caretice, uma moralidade mínima, havia cortesia, havia clima de amor nos bailes e não a desbragada orgia sem limites. Hoje, há algo de decadência, de compulsivo, uma alegria obrigatória. Hoje há os corpos malhados, excessivamente nus, montanhas de bundas competindo em falsa liberdade, pois ninguém tem tanta tesão assim, ninguém é tão livre assim. Falta a celulite, falta o mau jeito, falta o medo, a ingenuidade, o romantismo, falta Braguinha, falta Lamartine Babo, falta Mario Lago.
O carnaval de hoje parece uma calamidade pública musicada por uma euforia desesperada e disputada pelo narcisismo de burgueses e burguesas se despindo para aparecer na TV. Para descobrir um carnaval mais puro, há que ir à Mangueira, às velhas guardas, aos blocosdesujo das ruas pobres, aos clowns de Santa Cruz (ainda os há?); em suma, há que ir aos detritos que sobraram dos anos 40 e 50, assim como olhamos velhas fachadas entre prédios modernosos.
Quando passam as baterias das escolas, quando uns garotos sambam no pé, ainda vislumbramos alguns traços de beleza autêntica. Por isso, acho que a grande tradição do carnaval está mais presente nos blocos dos foliões anônimos. Nas ruas, estão os blocos dos anjos de cara suja, os blocos das escrotas, dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada pobre. Podemos ver nas ruas a preciosa origem do carnaval profundo. Lá estão os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial. Só os sujos são santos.
Ali vemos as fantasias de surda revolta contra o trabalho desumano, o exorcismo da miséria, o prazer de escrachar a beleza óbvia dos ricos. No carnaval de rua existe uma coisa mais além da “imoralidade”; há uma santidade nesta explosão de carne que não se explica. Pela crítica a essa beleza limpa, vemos uma poesia grotesca que atravessa os séculos desde Brueghel, Bosch, Rabelais até desaguar no barroco brasileiro. Ali, nas ruas sujas, estão as três raças brasileiras entrelaçadas na esperança de um casamento grupal doido: negros, brancos e índios dando à luz um grande bebê mestiço e gargalhante.
Mas, mesmo com sua modernização careta, é melhor entender o Brasil através do carnaval do que ver o carnaval como um desvio da razão. Como pode o mundo achar o carnaval uma loucura, este mundo irracional de George W. Bush, Dick Cheney, Osama bin Laden, Mahmoud Ahmadinejad, de Halliburton, Abu Ghraib e de guerras sem fim? O carnaval mostra que o Brasil tem outra forma de “seriedade”, mais alta que a gravidade do mundo anglo-saxão. O carnaval mostra a matéria de que somos feitos, por baixo dessa mímica de “ocidente” que o Brasil tenta há quatro séculos. Há uma “orientalidade africana” em nossa vida. A África e os índios nos salvaram, assim como salvaram os USA. Que seria da América sem o jazz? Um país branco-azedo, cheio de wasps tristes. Nosso carnaval mostra que o Inconsciente brasileiro está à flor da carne.
Já imaginaram um carnaval na Suíça? E no Paquistão? Talvez o carnaval seja uma doença salvadora, uma epidemia de delírio de que o mundo precisa. Brasileiro pode não ter espírito público, consciência social; mas, certamente, tem um Inconsciente à flor da pele, ao contrário dos países que pagam um alto preço pela Razão triste, por uma felicidade comedida. Existe uma clara diferença de sexualidade entre nós e os turistas que contemplam de boca aberta o descaramento de nossos rebolados. Nós só pensamos em ficar nus, como se quiséssemos voltar para trás, para uma grande tribo vermelha ou mulata. Há uma pureza nessa explosão de carne que não se explica, há um desejo de indianização, há um desejo de fundar um outro país, avesso à tragédia da pobreza; inconscientemente, queremos uma sociedade organizada, mas pelo desregramento; justa, mas alegre.
* Arnaldo Jabor é escritor e cineasta.
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