Crônica de Fernando Sabino.*
Quando me pediram que
escrevesse sobre um dos sete pecados capitais, havia apenas dois
ainda disponíveis: a Gula e a Preguiça. Sugeriram-me a Gula, mas
aí, que preguiça! como diria Macunaíma: por índole e vocação,
escolhi a Preguiça.
Já me dispondo
preguiçosamente a desimcubir-me da tarefa, ocorreu-me que o tamanho
requerido era de cento e quarenta linhas.
__Cento e quarenta
linhas? __busquei confirmação, apreensivo, calculando de cabeça:
__Mas deve dar mais de quatro páginas...
__Isso mesmo
__confirmaram: __Mais de quatro páginas.
E logo sobre a
Preguiça, da qual teria tanto a dizer __não fosse a sua existência
mesma a pavimentar até o inferno o caminho das minhas boas
intenções.
Pecador impenitente,
ocorreu-me de saída levantar suspeição sobre a condição de
pecado que as Sagradas Escrituras lhe atribuem, ainda mais de um dos
sete pecados capitais. De bom grado o substituiria por outro __a
Impaciência, por exemplo, que, por um lapso, foi omitida como oitavo
e que me parece ser o inspirador de todos eles.
Afirma-se com certa
impertinência que a Ociosidade, filha dileta da Preguiça, é a mãe
de todos os vícios. Trata-se, pois, de família das mais ilustres no
mundo dos pecados. Mas desde quando se pode atribuir à mãe( e no
nosso caso à avó) a culpa exclusiva de uma degenerada descendência?
Pois aqui estou eu,
disposto a escrever cento e quarenta linhas em defesa da Preguiça.
Escoimá-la desta balda injusta que lhe empresta, através dos
tempos, uma errônea interpretação das palavras de Deus. A preguiça
é própria do homem, feito à Sua imagem e semelhança. E não me
arguam de herético, se ouso dizer que até nisso a criatura estará
obedecendo aos sagrados desígnios do Criador. Tenho a meu favor as
aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem fazem provisão nos
celeios, e os lírios do campo, que não trabalham nem fiam.
Se na Natureza tudo se
transforma, não é menos verdade que nada se perde e nada se cria
__não havendo, pois, razões para que apressemos essa transformação.
A Lei da Inércia aí está, para não me deixar mentir, e a Preguiça
é o seu apanágio.
Preguiça e Paciência
andam juntas __ e ninguém há de contestar a força redentora desta
extraordinária virtude. A Calma, a Tolerância, a Serenidade, o Bom
Senso são outras tantas a que a Preguiça pode conduzir. Não nego
que costuma gerar também alguns vícios, como a indolência, a
morosidade, a negligência, a irresponsabilidade e o tédio desta
vida. Mas entre os extremos a que pode ser levada, permanecerá ela
como virtude em si, satisfazendo as condições de uma perfeita
equidistância aristotélica.
E o Grande Diligente? E
a tarefa incansável deste que anda pelo mundo para perder as almas?
Como o leão a rugir, o Demônio ronda lá fora acirrando ânimos,
estimulando apetites, desencadeando paixões, desdobrando-se em
atividades para arrancar os homens da bem-aventurada sombra e água
fresca, que só a prática da Preguiça como virtude é capaz de
proporcionar.
Ira, Luxúria, Gula,
Inveja, Avareza, Soberba __ não, a Preguiça, como tal, não poderia
formar entre tão formidáveis pecados capitais. Seu cultivo talvez
conduza antes a negação dos demais, exatamente por implicar a
inexistência do elemento propulsor, o animus abutendi, sem o qual
eles não chegam a se concretizar. Não fazer nada não significa
necessariamente deixar de fazer o bem: este já estará sendo
praticado, na medida em que a Preguiça nos impede de fazer o mal. É
uma lição que só não aprende quem é incapaz de ficar à toa, ao
sabor dos pensamentos, por não ter pensamento algum.[...]
* Crônica extraída do livro A Inglesa Deslumbrada(1967).
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