Nesse feriado de Corpus Christi, entre um comprimido e outro para me recuperar de uma faringite, fiquei a folhear uma revista de filosofia a fim de ver o tempo passar mais depressa. E numa matéria especial sobre democracia, eis que me deparo com um conto de Carlos Drummond de Andrade. Ao lê-lo esqueci até da dor por alguns instantes. O texto, analgésico enquanto estimulante da produção de dopamina no meu organismo, é simplesmente extraordinário. Coisa de gênio mesmo essa arte de mesclar simplicidade e conteúdo num entrelaçar de palavras inconfundível . E não bastassem suas propriedades terapêuticas, esse pequeno trecho da obra de Drummond ainda nos remete a uma reflexão sobre a política da Província, já que este ano tem muita gente querendo ser 'presidente' e também integrar a comitiva dele na 'festa'. Há, inclusive, pessoas dispostas a tudo para fazer parte dessa tal comitiva. Comentários encerrados (pelo menos os meus até aqui), não poderíamos ir direto ao texto sem antes fazer uma advertência: leiam à vontade, ele não tem contraindicações.
Governar.*
Os garotos da rua resolveram brincar de governo, escolheram o presidente e pediram-lhe que governasse para o bem de todos.
- Pois não – aceitou Martim. – Daqui por diante vocês farão meus exercícios escolares e eu assino. Clóvis e mais dois de vocês formarão a minha segurança.
Januário será meu Ministro da Fazenda e pagará o meu lanche.
- Com que dinheiro? – atalhou Januário.
- Cada um de vocês contribuirá com um cruzeiro por dia para a caixinha do governo.
- E que é que nós lucramos com isso? – perguntaram em coro.
- Lucram a certeza de que têm um bom presidente. Eu separo as brigas, distribuo tarefas, trato de igual para igual com os professores. Vocês obedecem, democraticamente.
- Assim não vale. O presidente deve ser nosso servidor, ou pelo menos saber que todos somos iguais a ele. Queremos vantagens.
- Eu sou o presidente e não posso ser igual a vocês, que são presididos. Se exigirem coisas de mim, serão multados e perderão o direito de participar da minha comitiva nas festas. Pensam que ser presidente é moleza? Já estou sentindo como esse cargo é cheio de espinhos.
Foi deposto, e dissolvida a República.
*Carlos Drummond de Andrade. Contos Plausíveis. Rio de Janeiro. Record, 1994.
Nenhum comentário:
Postar um comentário