quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Crônica


Transcrevo abaix
o texto do jornalista Carlos Santos.Nele se retrata um dos maiores dramas sociais do mundo contemporâneo. Excelente crônica que merece a leitura de quem admira um belo texto.

A morada em que o flagelo fez pouso


Por Carlos Santos

Conheço-o há mais de 20 anos. Nunca existiu fosso entre nós, mesmo que ele cumprisse papel de modesto ASG e eu, teoricamente, estivesse num degrau social acima.

Somos amigos, posso dizer.

Agora fico paralisado ao ouvi-lo com voz que teima em despistar meus ouvidos. Fala sobre sua família.

Tem um filho de 26 anos tomado pelo crack. O jovem perdeu emprego; mulher e filho o abandonaram. Hoje é um zumbi, a serviço do vício incontrolável.

Deve R$ 400,00 a traficantes e a qualquer momento pode ser executado, por não saldar o compromisso.

É uma história como tantas outras que já vi e soube. Mas é diferente quando bate à porta de alguém próximo, de boa índole. É trabalhador que está nas entranhas da imprensa há décadas.

Sinto-me consorciado na dor, mas é pouco. Digo-lhe que estou à disposição para ajudá-lo, não é o suficiente.

Enfim... O que fazer?

Corpo esquelético, amarrarotado pelo tempo, olhar opaco, estou diante de um pai entre milhares e milhões, com a mesma chaga. Não parece ter mais a alegria de antes, a verve e a espontaneidade picaresca que o caracterizavam.

Sua família está doente. O crack tem esse poder de socializar a miséria. Nivela todos por baixo e para mais baixo, até a sepultura. Enquanto não mata, maltrata de forma hedionda.

Antes, era uma droga a mais que agia nas bordas do tecido social. Quase ninguém lhe deu atenção. Bombou. Já é consumida pela classe média e alguns bacanas. Em todos, o efeito é devastador. Avança em espiral e escala geométrica.

Transforma gente em trapo, desfigura corpo e alma. Destrói famílias, amputa sonhos.

Hoje está na casa do meu amigo. Fez morada e não quer sair. Amanhã, quem sabe, fará pouso na minha ou na sua casa. Espero que não.

Ninguém está imune a esse flagelo.

Direta ou indiretamente, estamos todos no mesmo barco que começa a adernar. E não é sensato apelarmos pro lema dos egoístas, o "salve-se quem puder".

A indiferença é a chave para a expansão dessa mazela. Seu triunfo é nosso fracasso como ser humano e a sentença de morte como civilização.

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