segunda-feira, 4 de julho de 2016

Os buracos da memória e a verdade atemporal

Buraco da memória numa imagem do filme 1984.
Todo dia era a mesma coisa. Ele chegava ao local de trabalho e de lá o ofício o obrigava a mudar o mundo. Pelo menos aquele dos jornais, revistas e outras publicações sob a supervisão do governo. Sua principal função era “corrigir” notícias contrastantes com a realidade permitida pela autoridade da época. Falo do protagonista de 1984, clássico de George Orwell, escrito em meados do século passado, mas de uma atualidade fantástica.

Na obra, o personagem Winston Smith era um agente estatal vinculado ao Ministério da Verdade e responsável pela revisão dos textos voltados ao grande público. Ao detectar informações “equivocadas”, Smith, em atenção às ordens superiores, eliminava os documentos contendo as versões obsoletas, jogando-os numa abertura da parede de sua estação de trabalho, conhecida como buraco da memória. Por essa passagem, os títulos, então apócrifos, viravam lixo e eram incinerados em uma fornalha.

Assim o sistema mantinha a existência de um relato único sobre os fatos, o mais conveniente, é claro, e impedia a comparação com qualquer outro registro sobre os mesmos acontecimentos. Tal processo consistia, portanto, no controle do presente para alterar o passado, e garantir, dessa forma, o futuro do poder constituído.

Décadas depois de sua primeira edição, o best-seller do escritor inglês ainda reproduz histórias do nosso tempo. Não porque a dinâmica e os métodos fictícios sejam aplicados exatamente como o autor os descreve, mas pela lógica da atualização do passado combinada com a liberdade vigiada. Neste ponto, a narrativa deixa as páginas do livro, projetando-se no universo capturado pelos sentidos humanos sem perder sua essência.

Seguida à risca por seres de carne e osso, a trama, agora real, faz jus ao romance porque elegeu a liberdade de expressão como alvo preferencial. E não apenas! Ela também encorajou muita gente nonsense a buscar meios alternativos de seleção de conteúdo. Dentre eles, o Judiciário brasileiro. Na falta de um autêntico buraco da memória, sobrou para esse poder a difícil tarefa executada pelo herói da literatura.

A situação é tão séria que a censura inspirada na ficção possui ritos e instrumentos jurídicos próprios para mobilizar a estrutura do Estado a seu favor. E o pior: ela tem adeptos dentro das instituições republicanas. Altos funcionários que, por um instinto de classe, acatam o falso argumento da ofensa pessoal.

Como não faltam precedentes absurdos nos tribunais, uma legião de figuras públicas, sobretudo políticos de viés coronelista espalhados pelos rincões deste país, tem inundado o aparelho judicial com suas demandas cada vez mais bizarras.

No bojo de tais pedidos está o ajuste de fatos pretéritos a fim de proteger a própria imagem da corrosão provocada pela verdade atemporal. É como se as escolhas e ações de outrora pudessem ser refeitas num passe de mágica ao sabor dos interesses políticos atuais.

Contudo, importa dizer que os algozes da liberdade de opinião não agem sem serem incomodados. Isso porque no encalço da sanha autoritária há sempre forte resistência democrática, pronta a resguardar o livre pensamento do fogo arbitrário através do exercício incessante da palavra.

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