Por Genildo Costa
Quando o espelho não consegue mais reproduzir a nossa imagem para dentro de nós mesmos é sinal de que estamos cada dia menos interessados quanto a vidraça que nos impede de ver o outro lado da rua.
Que não seja necessário saltar o muro do vizinho para entender, de fato, a dor que agoniza e que deixa seqüelas. Que não sejamos tão míopes para com os retardatários, pois sempre existirá tempo de abraçá-los. A cidade acanhada, de vez em quando tropeça, tomba, mas não consegue compreender sequer o bêbado que atrapalha o passeio público.
Todo cuidado é pouco para com os que não alcançam os padrões de normalidade. Não tenha dúvida: do riso mascarado se extrai o conceito ideal desse espectro que assusta e contamina o ambiente.Tudo na absoluta normalidade. Não poderia ser diferente. Passamos a infância inteirinha aprendendo a gostar do trigo e sempre sonhando em comer faisão.
Aprendemos muito pouco a exercitar o abraço sincero porque nessa total ausência de solidariedade fomos surpreendidos com o fim da expressão sensível e poética da alma.
Não há mais novidade por detrás de cada aurora. Somente a certeza de que os dias vindouros trarão consigo a convicção de mais uma outra manhã sombria.
Do arlequim cheiroso, a sensação de que a sua essência possa não transcender os muros dessa eterna vontade minha de não acreditar jamais numa outra possibilidade de aguar outros jardins em flor. Tão frágil é a flor que amanhece sem vaidades. Tão serena é a tua grandeza quando ensaia os primeiros encantos da tua primavera.
Haverá sempre pra cada começo de calendário uma oportunidade para que se inicie uma nova trajetória onde possa nos levar ao encontro de um novo paradigma de produção e consumo, priorizando de maneira justa e solidária as necessidades básicas dos povos, vítimas da ganância e da exploração do homem pelo homem.
O tempo nos espera no dobrar de qualquer esquina mesmo que saibamos quanto é difícil proclamar ao irmão mais próximo o pacto dos homens celebrando efetivamente o princípio de uma nova relação onde a ética na política possa resgatar a noção de coletividade.
Sob os céus do Haiti, não há como evitar as conseqüências de uma tragédia anunciada. A natureza responde à altura e gera o debate planetário em meio aos escombros que só haverão de ser removidos quando os ventos de um novo processo civilizatório soprarem definitivamente, apontando para a constelação de uma nova vida, uma nova morada não mais assentada no lucro e na acumulação do capitalismo selvagem.
Fomos historicamente cooptados para a defesa intransigente de uma mesma retórica onde as condições objetivas de um único modelo de desenvolvimento nos ensinou a conviver lado a lado com um exército de miseráveis adaptados a um contexto de profunda exclusão social.
Que a enganação dos templos nos deixe pelo menos toda certeza de que o imperativo da palavra não seja mais uma ferramenta disponível para se lapidar um outro modelo de concessão fandamentado na vaidade e na soberba humanas.
Para os insensatos e tiranos, a irrevogável sentença. Para os detentores do poder, a convicção plena de que a socialização da riqueza se constitui num gesto de grandeza e de altruísmo.
Estejamos atentos, pois haveremos de nos encontrar. Quem sabe numa outra estação onde a farta colheita possa anunciar o canto novo de uma humanidade menos injusta e mais fraterna.
* Genildo Costa é cantor e compositor e colaborador do jornal PORANDUBA.